O sino toca na aldeia, aquele som
arrepiante que nunca traz boas notícias. A não ser para o anúncio do evento
semanal que junta todos os que querem por uma horita não se sentir sozinhos.
Quando o toque é para indicar a missa, parece que os nossos velhos saem de casa
com aquela alegria de criança, procurando ali o espírito novo, e vendo caras
que durante a semana ficam por casa, tal como cada um deles. A semana custa a
passar a partir de uma determinada idade. E vão contando os dias rumo ao estádio
final, onde esperam que tudo aconteça, onde querem acreditar que há uma vida
para além desta, que Deus é o pai desta e sobretudo da vida que nos está
destinada. Mas a morte é um fecho de história terrível.
E de repente percebe-se que o
toque de sino é para indicar que alguém morreu. Logo todo um povo acorre à
janela para tentar encontrar alguém na rua e perguntar pela resposta que pode até
nem estar preparado para ouvir. E fazem a pergunta clássica: “Quem morreu?”. E
do outro lado, ouve-se a resposta, “Foi o Zé Francisco”. E de um segundo para o
outro a cara de curiosidade torna-se chorosa, afinal o amigo de infância acabara
de morrer. O amigo com quem brincou na rua, no tempo em que se brincava na rua,
correndo os perigos mais variados. O tempo de meninice que parecia jamais
terminar. E a memória vai buscar episódios que nem ela se lembrava, pede-se-lhe
um esforço adicional para lembrar brincadeiras de outrora, quando o Sol era
mais quente, quando a chuva era mesmo chuva e sobretudo quando as brincadeiras
eram puras e genuínas. E lembram-se as enormes batalhas do pião, do berlinde,
as tardes a procurar quem saltava mais e melhor na macaca, quem mais
rapidamente trepava a tília da aldeia ou até, imagine-se que heresia nos tempos
de hoje, quem atravessava rapidinho a estrada para chegar mais rápido no jogo
da apanhada ou das famosas escondidas que o Zé ganhava sempre por ser bastante
rápido.
E de rompante passa um dia e o Zé
Francisco depois de lembrado por todos terá que partir para a sua morada final.
O povo sabe disso e quando as forças já não permitem sair de casa para uma derradeira
despedida ao amigo, aproveita-se a janela daquela rua onde passa o cortejo fúnebre.
Aquela rua que, normalmente, é habitada pelas pessoas que mais vezes recorrem à
lembrança e ao antigamente. E num ápice começa a tocar o sino anunciando o
início da caminhada rumo ao cemitério. Eis que as janelas se abrem e surgem
rostos fechados à procura de perceber mesmo que aquilo é real, e que o Zé já não
vai mais sentar-se no café a ver a bola, no banco do jardim a contar anedotas
ou no largo a atirar a bola às crianças. E toda esta incapacidade e
inevitabilidade do destino vai-lhes tirando anos de vida. Partes destas pessoas
vão com quem parte e elas sabem exactamente isso. Vai-se o amigo de sempre, E
conforme passa o cortejo eis que alguém as vê tristes e lhes sorri como que
tentando reconfortar a dor. Alguns acenam-lhes mas as mãos estão ocupadas,
procurando limpar as lágrimas ao lenço ou a um pano velho que trazem no bolso
do avental.
A morte é um pano que se fecha tal como as cortinas acabam por ser
fechadas mal termina a passagem do cortejo. A partir dali nada mais é nada. E
tudo acaba por ser tudo: nada mais será como dantes e tudo dali para a frente é
distante. O Zé Francisco jamais voltará à aldeia, assim como o Manel, a Maria
do Xico, o Hélio da Mercearia, a Teresa feirante, o Eduardo professor, a
Mariazinha da Palha, o Armando da Boina… e tantos, tantos outros que quem cá
fica já viu partir.
A cortina fecha e jamais tudo voltará a ser igual. Então
tenta rezar-se o terço para que o Zé chegue bem à morada final e seja recebido
por Deus Nosso Senhor. E quando ele chegar há qualquer coisa no espírito dos
que dele mais se lembram que se vai acender. O Zé estará com eles naquele
momento. Ele e as brincadeiras, ele e o peão, ele e a sua magnífica colecção de
berlindes, ele e as cartas que tao bem sabia jogar, ele e sua meninice eterna.
A cortina fecha, até um dia, Zé.
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