terça-feira, 18 de março de 2014

Olá, progenitor, tudo bem?


Olha, vamos deixar-nos de formalismos. Eu não sou teu filho e tu não és meu pai. Biologicamente e civilmente apareces como tal. Mas no mais importante nunca representaste tal figura. É que um pai simboliza imenso, é mais do que alguém que ajuda a conceber uma nova vida. Por isso esquece essa ideia de que tens um filho. Aliás, eu acho que tu sempre esqueceste porque até hoje… até hoje deixaste-me sempre na ideia de que para ti sou nada. E ainda bem. Porque para mim és exactamente o mesmo. Melhor, és só e apenas alguém que ajudou a colocar-me neste mundo pra tentar ser feliz sem ti. Sim, repito para perceberes bem: Sou apenas alguém que tu colocaste no mundo para lhe dares a simples tarefa de ser feliz sem a tua presença. E vês, vês como consegui? Vês como sou bem mais homem do que tu? Vês como em 22 anos consegui tentar fintar preconceitos e dúvidas algumas delas bem maldosas? Lembro-me sempre de na escola ouvir, entre os corredores, “o Carlos não tem pai.”. E depois alguém mais velho aparecia e dizia: “Então, meninos, claro que tem. Todos temos. O Carlos apenas não o conhece.”. Consegues imaginar o quão era duro ouvir isto? Apesar de tudo eu era uma criança que ouvia os outros dizer que eu não tinha alguém que eles tinham com eles. Não sabes. Não vais nunca saber. E nunca vais saber o que é ouvir aquela pergunta clássica que quando mudava de escola me faziam no dia 19 deste mês: “Então, Carlitos o teu pai gostou da prenda que lhe deste?”, ou “Então, Carlos já deste a prenda ao teu pai”. Sabes que custava, certo? Não, não sabes nada, porque simplesmente tu demonstraste o que eras quando saíste da minha vida sem te preocupares com o que eu iria ter ou como iria ficar sem ti, sem ali estares, como os pais dos meus amigos estavam. Mas se há alguma coisa de que te agradeço foi se tiveste que o fazer, se tiveste que me abandonar, ao menos que o tivesses feito naquela idade onde nada em mim se lembra de ti. Pudera, eu era bebé ainda. Agradeço-te porque assim não te fiquei a conhecer. 

És-me simplesmente indiferente. Só escrevo isto neste dia para lembrar a todos os que têm um pai, aquela pessoa genial, única, fantástica, que agradeçam sempre esse facto. E também escrevo isto pelos que, tal como eu, não criaram laços com uma figura parental. É que, não somos mais nem menos do que ninguém mas começamos a perceber desde bem cedo que a vida é menos encantada do que a dos desenhos animados ou a das histórias infantis. Nunca me deste um livro de histórias. Nem um CD de música, nem um DVD, nem uma Playstation, nem um abraço. Nunca tive o teu colo. Por tua causa, com 16 anos, tive que ouvir um padre chamar-me desequilibrado. Mas sabes - claro que não sabes mas eu vou-te dizer,   foi graças a esta tua cobardia que dura há 22 anos que fiquei mais forte e reforcei as minhas energias. 


Muitas vezes perguntaram-me se não tinha curiosidade de te conhecer. Apenas lhes respondia como podia ter curiosidade de conhecer alguém que nunca me procurou. Sim, tu foste muitíssimo cobarde e pelos vistos orgulhas-te disso já que não voltaste mais de 20 anos depois. Nem voltaste, nem telefonaste, nem te preocupaste, nem foste pai. Não foste, não foste e escusas de dizer o contrário. Pai não é quem ajuda a nascer, é quem ajuda a crescer. Prefiro acreditar que a vida não te deixou representar esse papel tão fantástico, tão carregado de simbolismo, tão importante que é o de ser pai. E tu sabes, tu sabes bem que não foste homem, nem encontro uma categoria para te enquadrar. Neste dia que para muitos é o Dia do pai, tu obrigaste-me a recordar o 19 de Março como o dia do progenitor. Ao contrário o dia da mãe festejo-o de forma bem reforçada. Caso não saibas tive alguém que te substituiu. Mentira, não te substituiu porque tu nunca exististe, nunca entraste em campo. A minha mãe não te substituiu. A minha mãe é só a pessoa mais fundamental da minha vida. E sabes, progenitor, a maior falha desta obra – que muitos julgam divina – que é o nascimento de um ser humano é a impossibilidade de um homem ou uma mulher poderem gerar filhos sozinhos. Poupava-se tanta coisa, tanto sofrimento. Evitava-se tanto preconceito. Evitava-se gente como tu. Evitava-se miúdos que como eu tiveram que crescer sem pessoas como tu que supostamente tinham que ser o que não foram. Tinham que estar onde não estiveram. Tinham que ajudar o que não ajudaram. Tinham que ficar e não ficaram.

Não te desejo mal, és-me simplesmente indiferente. E a culpa é tua.

Um abraço, e sê feliz. Tentarei sê-lo também.

domingo, 16 de março de 2014

Obrigado, Eusébio




Escrever sobre Eusébio já é difícil. Foi um genial jogador e uma pessoa íntegra, humilde e genuína. Escrever sobre o “Pantera Negra” no dia em que partiu é tão complicado como ingrato. É que Eusébio é vida, não é morte. Eusébio é garra, é vitalidade, é força, é toque mágico. Nada em Eusébio combina com o sentimento de tristeza e pesar que invade este país que ama o futebol. Eusébio chorou por nós no Mundial de 1966, ele amava Portugal, ele sentia o nosso país, quis levar a nossa bandeira tão longe quanto possível. As lágrimas dele naquele dia não deviam ser as nossas hoje. Repito: não deviam ser as nossas hoje porque devemos celebrar tudo o que nos deu. Mas nós, ao contrário de Eusébio, somos mortais, choramos a partida dos nossos ídolos, sentimos que mais uma referência desaparece deste Mundo que nos dizem que é apenas uma passagem. De uma coisa estou certo: o King tem lugar onde só os melhores chegam. Uma espécie de paraíso dos geniais, das figuras que lembramos a sorrir, que recordamos pelas melhores razões, numa memória colectiva que jamais se apagará.

Eusebio2
Com Eusébio percebi que o futebol é mais do que um toque fantástico numa bola (que até começou por ser de trapos, no seu caso). Ser futebolista (como desportista em geral) é ter noção de que há um adepto, de que há um valor que mais alto se levanta, há um clube, há um país. Eusébio seguiu a máxima de Mário Wilson que um dia, numa gala de um qualquer aniversário do Sport Lisboa e Benfica, disse que, quando jogava, um valor mais alto se levantava. Esse valor chamava-se Benfica. Eusébio desde cedo percebeu isso e foi enorme. Enorme como poucos serão. Enorme na humildade, na sinceridade, na genuinidade, no respeito pelos companheiros de equipa com mais idade e experiência, e no respeito cheio de rivalidade para com os seus adversários que hoje também o choram. E sem nunca esquecer o adepto, o benfiquista e o português. Ele jogou por todos nós.


Eusébio viveu num tempo difícil, num Portugal cinzento, cheio de incertezas. Ele foi a imagem de um país. Com a “Gaivota” da Amália Rodrigues voou por esses relvados fora sabendo de antemão que o regime queria que fosse a nossa bandeira tentando mostrar que havia um bom ambiente colonial. Eusébio foi também usado politicamente como tantos e tantos outros, Amália, por exemplo. E como gostavam um do outro. Sem rivalidades. Um fintando adversários criando oportunidades de golo onde muitos nem sequer sonhavam que a bola passasse, rematando brilhantemente provocando reacções de espanto nos guarda-redes que nem sabiam por onde a bola tinha entrado. E outro, neste caso outra, cantando e encantando com a ajuda de grandes letras, de grandes composições e de uma voz ainda hoje considerada como uma das melhores vozes do século XX. Eusébio e Amália, duas lendas que se tivessem nascido noutro país, mais aberto ao mundo, eram ainda hoje mais glorificados, mais homenageados, mais profundamente admirados. Têm a admiração deste povo que “Lava no Rio“ e que como dizia Manuel Alegre viu os golos de um senhor que escrevia poesia nos relvados. Hoje, se o mundo dos imortais for como eu sonho estarão juntos a contar histórias e a encantar outros tantos que também merecem lugar cativo nesse espaço belo que a imaginação consegue idealizar. Eusébio vai estar sempre connosco. Ele não é Benfica, é Portugal. Ele não é só jogador, foi um brilhante embaixador de Portugal. Ele é apenas e só um dos melhores intérpretes que o futebol conheceu. E ele é nosso. Orgulhem-se.
Até sempre, Rei.




domingo, 9 de março de 2014

Ei-los que partem






O sino toca na aldeia, aquele som arrepiante que nunca traz boas notícias. A não ser para o anúncio do evento semanal que junta todos os que querem por uma horita não se sentir sozinhos. Quando o toque é para indicar a missa, parece que os nossos velhos saem de casa com aquela alegria de criança, procurando ali o espírito novo, e vendo caras que durante a semana ficam por casa, tal como cada um deles. A semana custa a passar a partir de uma determinada idade. E vão contando os dias rumo ao estádio final, onde esperam que tudo aconteça, onde querem acreditar que há uma vida para além desta, que Deus é o pai desta e sobretudo da vida que nos está destinada. Mas a morte é um fecho de história terrível. 

E de repente percebe-se que o toque de sino é para indicar que alguém morreu. Logo todo um povo acorre à janela para tentar encontrar alguém na rua e perguntar pela resposta que pode até nem estar preparado para ouvir. E fazem a pergunta clássica: “Quem morreu?”. E do outro lado, ouve-se a resposta, “Foi o Zé Francisco”. E de um segundo para o outro a cara de curiosidade torna-se chorosa, afinal o amigo de infância acabara de morrer. O amigo com quem brincou na rua, no tempo em que se brincava na rua, correndo os perigos mais variados. O tempo de meninice que parecia jamais terminar. E a memória vai buscar episódios que nem ela se lembrava, pede-se-lhe um esforço adicional para lembrar brincadeiras de outrora, quando o Sol era mais quente, quando a chuva era mesmo chuva e sobretudo quando as brincadeiras eram puras e genuínas. E lembram-se as enormes batalhas do pião, do berlinde, as tardes a procurar quem saltava mais e melhor na macaca, quem mais rapidamente trepava a tília da aldeia ou até, imagine-se que heresia nos tempos de hoje, quem atravessava rapidinho a estrada para chegar mais rápido no jogo da apanhada ou das famosas escondidas que o Zé ganhava sempre por ser bastante rápido. 
 
E de rompante passa um dia e o Zé Francisco depois de lembrado por todos terá que partir para a sua morada final. O povo sabe disso e quando as forças já não permitem sair de casa para uma derradeira despedida ao amigo, aproveita-se a janela daquela rua onde passa o cortejo fúnebre. Aquela rua que, normalmente, é habitada pelas pessoas que mais vezes recorrem à lembrança e ao antigamente. E num ápice começa a tocar o sino anunciando o início da caminhada rumo ao cemitério. Eis que as janelas se abrem e surgem rostos fechados à procura de perceber mesmo que aquilo é real, e que o Zé já não vai mais sentar-se no café a ver a bola, no banco do jardim a contar anedotas ou no largo a atirar a bola às crianças. E toda esta incapacidade e inevitabilidade do destino vai-lhes tirando anos de vida. Partes destas pessoas vão com quem parte e elas sabem exactamente isso. Vai-se o amigo de sempre, E conforme passa o cortejo eis que alguém as vê tristes e lhes sorri como que tentando reconfortar a dor. Alguns acenam-lhes mas as mãos estão ocupadas, procurando limpar as lágrimas ao lenço ou a um pano velho que trazem no bolso do avental. 

A morte é um pano que se fecha tal como as cortinas acabam por ser fechadas mal termina a passagem do cortejo. A partir dali nada mais é nada. E tudo acaba por ser tudo: nada mais será como dantes e tudo dali para a frente é distante. O Zé Francisco jamais voltará à aldeia, assim como o Manel, a Maria do Xico, o Hélio da Mercearia, a Teresa feirante, o Eduardo professor, a Mariazinha da Palha, o Armando da Boina… e tantos, tantos outros que quem cá fica já viu partir. 


A cortina fecha e jamais tudo voltará a ser igual. Então tenta rezar-se o terço para que o Zé chegue bem à morada final e seja recebido por Deus Nosso Senhor. E quando ele chegar há qualquer coisa no espírito dos que dele mais se lembram que se vai acender. O Zé estará com eles naquele momento. Ele e as brincadeiras, ele e o peão, ele e a sua magnífica colecção de berlindes, ele e as cartas que tao bem sabia jogar, ele e sua meninice eterna. A cortina fecha, até um dia, Zé.

sábado, 8 de março de 2014

Para vós, mulheres

Dizia Oscar Niemeyer que “não há nada mais importante que a mulher, o resto é bobagem”. Nietzsche escreveu que “a mulher foi o segundo erro de Deus”, sendo o primeiro erro o homem. À partida esta frase do filósofo alemão parece insultuosa para com as criaturas mais belas deste planeta. Mas não é: Niezche assume que o primeiro erro foi o homem, porque o homem é errático quando comparado com a beleza feminina. É errático e profundamente vazio de sentido. Marcel Proust suplicou: “Deixemos as mulheres bonitas para os homens sem imaginação”. E com isto busco uma frase de Camus n’ O Mito de Sísifo “Do amor só conheço esta mistura de desejo, de ternura e de inteligência que me liga a um determinado ser”. Só esta tríade permite definir uma pessoa, neste caso, uma mulher. Nada mais aqui se pode acrescentar. Mas a mulher na vertente familiar é um pilar fundamental. A mulher é a imagem da segurança carinhosa, do amparo rigoroso, se quisermos até do amor atento. É a profunda convicção e a prova provada de que é possível amar, compreender e ter um lado mais severo, que observa, critica, e ajuda a resolver. 


A mulher é exactamente isso. E isso também a diferencia do homem que é muito mais castigador do que apaziguador e muito menos afável e mais rigoroso até ao limite do razoável, muitas vezes. E depois o fascinante na mulher é o lado místico, aquela coisa de nunca sabermos o que estão a pensar. Uma amizade feminina, para mim, é fundamentalmente baseada nesta coisa quase intrínseca ao ser humano chamada cumplicidade. É complicado haver entre rapazes a ligação que se cria entre um amigo e uma amiga, aquele elo de ligação, quase que se lhe pode chamar uma complementaridade, com tudo o que isso acarreta de bom e de mau. Ser amigo de uma mulher é basicamente ter noção de que haverá dias em que não se vai conseguir percebê-la de forma nenhuma mas em que temos a certeza de que vão ser dias óptimos na companhia de alguém que ouve, gosta de conversar e sobretudo gosta de partilhar da sua felicidade com o outro. É também aqui que a mulher faz diferença. 

Esta abertura de espírito, despegada de medos, de constrangimentos tão típicos do homem. A coisa de dizer: “Amo-te amigo” é facílimo ouvir dita por vós, caras amigas. E este amo-te é ainda mais sentido porque dito por vós que amam como ninguém. Esta é uma convicção que trago de há muito tempo, acho que a mulher ama mais do que o homem. Não deixa de ser curioso aliás que as pessoas que publicamente mais sofreram por amor sejam mulheres. Lembro assim de repente Amália, Piaf, a Princesa Diana… 
O amor e o sofrimento são femininos apesar das palavras serem masculinas. Lá está, até nisto há complementaridade. Porque só assim faz sentido, um não vive sem o outro. E aqui nada há de preconceituoso. Um filho não vive sem a presença da mãe (se não for fisicamente, nos valores passados, nas memórias, nas lembranças), por exemplo. 

Não é necessariamente só e apenas o amor conjugal que entra nesta questão e que define este dia. Porque o amor nas suas multiplicidades (que são efectivamente reais) obriga a que homens e mulheres, mulheres e homens, estejam unidos, neste cenário, nesta tela, como queiram, a que todos insistem em chamar vida. Daí que o cineasta francês François Truffaut tenha escrito que “no amor as mulheres são profissionais e os homens amadores”







 Por isso, por serem fundamentais neste elo, vós, mulheres, tereis que fazer notar a vossa garra, determinação, e com o lado mais fraterno e apaixonado fazerem a diferença. A mulher mais marcante não é a que grita mais pelos seus direitos. É a que age. A mulher mais marcante não é a mais exibicionista. É a mais lutadora.

 



Feliz dia, por vós e por nós. Façam-nos o favor de continuarem autênticas na vossa multiplicidade de sensações e sentimentos. Só assim isto tem piada. O sal vem daí. Sejam felizes. E obrigado, muito obrigado por existirem.

terça-feira, 4 de março de 2014

O Zé, o Francisco e a amizade




Sempre me ensinaram que na vida há pessoas boas e pessoas más. Começámos por saber isso logo nos contos infantis. A maldade aparecia-nos ao virar de cada página sob várias formas. E nós vamos crescendo e conhecendo essa mesma maldade na prática e também sob várias formas. Desde logo na falsa amizade. Aquela amizade mesquinha e que por isso jamais merecerá ter esse estatuto. Jamais poderá ser chamada por tal nome que se reveste de uma simbologia mágica que junta o A de amigos e o E de eternidade, como vi recentemente num post trocado nesta rede social - que facilitou (e nalguns casos estragou) amizades. Só estragou as amizades falsas porque tudo o que é verdadeiro, dura. 


Dizem-me que as pessoas têm todas lados um lado lunar, talvez seja por isso que o meu lado lunar seja pouco entendível por alguns. E depois há de tudo: há gente desprendida, há gente interesseira, há gente oportunista, mas depois também há gente gentil, gente solidária, gente fraterna. São as segundas que valem a pena. Só e apenas essas.

Esta história que vos vou contar nada tem de real, portanto um pouco à imagem daqueles filmes e grandes ficções terei que dizer que toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência, ou talvez não.


Era uma vez dois amigos, diferentes em quase tudo, no modo de viver a vida, nos percursos de vida, no estilo de vida, em tudo, quase tudo. E ambos sabiam de vários segredos um do outro, sabiam porque supostamente eram amigos. Ah chamavam-se Zé e Francisco como poderia ser Fernando e Joaquim ou Frederico e Tó. O Zé sempre se mostrou mais franco com o Francisco: era o Zé que combinava saídas e nunca as desmarcava por quase nada a não ser que fosse grave, era o Zé que a maioria das vezes ouvia o Francisco e os seus dramas pessoais, era o Zé que apoiava o Francisco mesmo que o Francisco lhe atirasse à cara que apenas e só ele falava dos seus dramas. Mas o Zé explicava que uma amizade é dar e não receber. E o Francisco continuava a dizer que o Zé não era obrigado a ouvi-lo. O Zé respondia-lhe que ser amigo não é obrigação, é gosto, é estar ali quando dá e até quando não dá. O Francisco optava por um estilo de vida da qual o Zé não participava e que muitas vezes prejudicava as saídas que estavam já combinadas. 


O Zé fartava-se de explicar ao amigo que por muito que fizesse, nada mudaria no Francisco, apenas a vida o poderia mudar. Porque a despreocupação, a ingratidão, a falta de noção que um sentia face ao outro eram evidentes. Porque o Francisco não achava que o Zé vivia a vida da melhor forma. Para ele a vida tinha que ser vivida sem dramas, sem preocupações, passando por cima do que se tinha combinado, ignorando que há outras pessoas no mundo. E revestia-se tanto deste pensamento que achava que não fazia mal a ninguém pensar assim e que apenas o Zé vivia a vida como um santinho e como um ingénuo, um parvo que acreditava na bondade das pessoas. O Francisco dizia que o Zé tornava-se chato de tanto o chamar à atenção acerca das coisas que não gostou. Mas o Francisco lá ia respondendo que fazia tudo pelos amigos e só o Francisco sabia como ficava após as conversas com o Zé: verdadeiramente arrasado e ciente de que o egoísmo que está na massa de que é feita muita gente, estava também no seu amigo, a ingratidão também, e já pra não falar na despreocupação que o outro demonstrava no modo como o tratava. 

Não havia por parte do Francisco qualquer tipo de arrependimento, para ele a vida era só e apenas ele e quem ele escolhia para os momentos que queria. Não importava mais ninguém, o Zé era o amigo chato, o amigo que ele muitas vezes aproveitava para deitar abaixo com frases estúpidas, perguntas tristes, verdadeiros momentos de pura infelicidade. A amizade não morava ali. Quantas vezes o Zé se arrependia de ser tão paciente, de aguentar tanto esta situação. Mas a vontade de acreditar que do outro lado morava alguém que, apesar do desprendimento e da falta de respeito pela amizade, podia valer a pena, permitia-lhe que fosse ajudando o amigo com conselhos e dicas úteis para ser melhor pessoa. Aconselhou-o sobre diversos temas, a tratar os outros como iguais em direitos, mostrou-lhe que a vida é de todos e não apenas de alguns, mostrou que a amizade é o laço mais forte de que a Humanidade dispõe. O Francisco dizia compreender, mas nunca o provava. O Zé dominava o tema e demonstrava-o em qualquer momento, quando os amigos dele precisavam. E alguns amigos na brincadeira, falando a sério, diziam que o Zé é o amigo que todos querem ter na exacta medida em que ele é o pronto socorro da malta toda. O Francisco de vez em quando demonstrava que o "curtia" mas de forma muito inconsequente.

 Até ao dia que o Francisco teve um acidente e todos os amigos, os tais “manos”, não estiveram quando ele mais precisou, só o Zé esteve com ele sentado, dia após dia, com a família do Francisco junto à cama do hospital. Todos os amigos “perfeitos” decidiram fugir, porque pela mesma razão que estiveram com ele no estilo de vida que ele levava, também na doença o demonstraram. E qual era o estilo de vida do Francisco? Curtir a vida, ora ali só havia doença. Era animação, ora ali só havia calmia e um velhote a ressonar de vez em quando na cama ao lado. Era álcool, ali só o etílico. Era música alta e noitadas, ali só o barulho baixinho da televisão e a visita acabava às sete. A história acabou quando, no fim do período de internamento, o Zé disse ao Francisco: “Finalmente percebeste o que é um amigo. Agora segue o teu caminho. A minha missão era esta, mostrar-te que é possível haver a preocupação pelo outro. Que é possível haver respeito pelo outro. A minha missão foi esta. Segue agora a tua vida”. A partir desse momento nunca mais se viram.


Parece básica, bem sei, mas é a história de vida de muita gente que passa os dias de forma desprendida, que quer afastar de si todos os que são diferentes e veem a vida de forma diferente. Querem tornar tudo homogéneo, tudo igual, onde o sentimento, o afecto sejam quimeras nesta passagem que todos atravessamos sem certezas factuais de uma outra vida após esta. Enquanto existirem muitos “Franciscos”, os Zés vão sempre fazer falta, porque enquanto uns falham… outros têm que cumprir. Porque a missão é dura mas reconfortante. Sejam bem-vindos à amizade, à verdadeira amizade.  

Fim de história.