quinta-feira, 22 de novembro de 2012

O puto que tinha a mania de relatar jogos de futebol


Ontem enquanto via António Oliveira num programa de debate desportivo, lembrei-me dos tempos em que, com um gravador na mão, um rapazito entrevistava (ou fingia que fazia mais ou menos isso) amigos e funcionários da escola amarela. De tal forma que desliguei a televisão e fui-me sentar em frente ao rádio. Agarrei no saco onde tenho essas cassetes (que guardo preciosamente) e pus a tocar aquela em que comentávamos o Mundial 2002. Aquele em que, desgraçadamente, fomos derrotados pela Coreia do Sul, treinados pelo "Oliveirinha". Dizia a D. Fátima - senhora que ainda hoje recordo com um sorriso - que o João Pinto bateu no árbitro e que "já na altura, quando andei com ele na escola ele nos pregava rasteiras". Uma brincadeira, claro. A conversa prosseguiu e até Luís Figo foi criticado por jogar para a publicidade e menos para ajudar a selecção portuguesa. Simulava um estúdio onde quem entrava tinha que ter a opinião bem afiada, daquelas opiniões que ninguém tem. Era, no fundo, mais atenção que aquele puto queria. Mas ele queria mais: queria pessoas que quisessem dizer algo, mas dizer algo não bastava. Era necessária garra no discurso. Aquele discurso marcante, aguerrido, humorístico, quase irreal. A Dona Fátima tinha-o. Era uma comédia. Interrompia o que os outros estavam a dizer e terminava sempre as intervenções com um "quando quiser torne-me a entrevistar. ponha-se à vontade comigo que eu estou à vontade consigo". Ora era isso que o puto queria. Alguém pronto a dizer alguma coisa. 

De tarde, na aula de Moral, esse puto achava que relatava futebol. O professor Alberto dava-lhe o gravador, uma cassete virgem e aí estava o puto sentado na bancada do campo de futebol pronto a iniciar o relato. Relatava com uma tal garra que parecia que o Mundo ia terminar. A voz falhava. Podia notar-se rouquidão. Mas a vontade do puto em continuar estava sempre no máximo. O miúdo chamava alguns amigos para o ajudarem na missão. Mas a sua mania de querer relatar sozinho fazia-o dominar a emissão. Qual emissão, qual quê? Aquela simples manifestação de um desejo de comunicar, isso sim. Mas na altura o puto achava aquilo o máximo. De tal forma que as sextas-feiras se transformaram em dias de relatos de futebol. Mas claro, um relato não chegava. Então o puto saía a correr das salas para nos intervalos antecipar aquilo que iria acontecer no jogo do fim da tarde entre a turma X e a turma Y. Deverão imaginar que uma cassete por vezes era pouco. Percorria a escola toda para encontrar a tal opinião inflamada. Na altura o puto não considerava inflamada. Digamos que à época apenas perguntava: "então o que pensas que vai acontecer hoje?". 

O jogo Portugal-Coreia do Sul foi o jogo J. Aquele em que ele quis ser o que tenta conquistar hoje. Aquele puto sentado na bancada do "estádio" da escola amarela, tenta ser hoje mais do que um puto comunicador. Mas tal como em tantos aspectos, esse puto não esquece como começou. Começou assim. Aos 10 anos, 5º ano com relatozitos de futebol. O relato acaba. O leitor de cassetes faz "clack". Fim de cassete. Venha outra. Mas só amanhã. Levanto-me. Digo adeus ao puto, prometo regressar a ele o mais breve possível. Faz-me bem estar com ele. Agora vou tentar dormir. Fica bem, puto, até qualquer dia! 

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