segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Obrigado, Amália.

"O que interessa é sentir o fado. Porque o fado não se canta, acontece. O fado sente-se, não se compreende, nem se explica." - Amália Rodrigues.


Costumam dizer-me, "Carlos, porquê Fado? Porquê gostares de uma música acabada, velha, ultrapassada, cheia de passadismos bacocos? Porquê?". Costumo responder-lhes que gostar de Fado é mais do que gostar de um estilo musical, gostar de Fado é viver num estilo de vida, é sentir cada palavra, é perceber cada trinar de uma qualquer guitarra, é chorar, é rir, é vibrar, é emocionar e emocionar-se. Gostar de Fado é arrepiar-se com um poema, é interpretar cada palavra.

E Amália deu isso ao Fado. Deu poesia, deu a alma que lhe faltava. Cantou poetas, deu conteúdo à nossa música por excelência. Amália deu intelectualidade, imortalizou poetas, interpretou letras, sonorizou sentimentos que doutra forma ficavam nos livros. Mas cantou sem desrespeitar ninguém, tendo sempre o cuidado de mostrar como cantava as letras aos autores das mesmas. Será preciso lembrar a lista de poetas que Amália cantou? David Mourão Ferreira, Pedro Homem de Mello, Manuel Alegre, Alexandre O'Neill, José Carlos Ary dos Santos, Camões... Com Alain Oulman, Amália deu voz aos maiores poetas deste país e levou-os a todos os cantos do Mundo, através dos seus espectáculos. Ainda hoje Portugal é Amália, muito embora tenha que reconhecer que Dulce Pontes e Mariza conquistaram o seu lugar nos espaços musicais português e internacional, mas ainda não atingiram o nível da Maior. 

Apesar de ter uma voz para outras "lides", Amália nunca recusou cantar, nos anos 40 e até depois, as canções de Frederico Valério, podemos dizer que o Fado nesse tempo era menos profissional? Nada disso. Amália dava-lhe um toque sublime, dava o que as canções precisavam para serem ainda hoje trauteadas por todos nós. Cantou folclore (imagine-se). Não foi apenas fadista, foi artista.



E escreveu. Amália foi autora de um fado que hoje toda a gente canta. "Ó gente da minha terra" que Mariza sempre interpreta mas raramente se lembra de mencionar que a letra é da autoria da grande Amália. Mas escreveu mais: Lágrima, Estranha Forma de Vida, Grito, Lavava no Rio Lavava... Ler estes poemas é perceber que Amália vivia num constante sofrimento e que se alimentava do estado "triste" para continuar a viver. Amália só podia ser portuguesa. Também nós vivemos sob um "Fado" constante e somos inertes perante ele, gostamos de viver assim, somos felizes na tristeza. Até nisto, Amália é-nos semelhante.

Quem é fraco costuma usar uma mentira para tentar deitar abaixo uma carreira de mais de 50 anos. Diz-se que Amália pertenceu ao antigo regime. Só alguém que está distante da canção portuguesa é que pode dizer semelhante coisa. Quem canta em 1962 (1962!) um poema como "Abandono", nunca mas nunca pode ser acusada de ser reacionária. David Mourão Ferreira dedicou-o a todos os presos  "Por teu livre pensamento foram-te longe encerrar, tão longe que o meu lamento não te consegue alcançar. E apenas ouves o vento e apenas ouves o mar". Amália cantou-o. E cantou Ary dos Santos e Manuel Alegre. 

Portugal ainda hoje não sabe o que Amália foi. Dizer-se que foi a bandeira de um país triste, cinzento e amargurado por um regime castigador não é pouco. Amália foi a representante máxima da cultura portuguesa num tempo absolutamente inquisidor. Amália foi enorme num país fechado. E manteve-se sempre ao lado de um povo a quem dedicou a sua carreira. Ela cantou para nós e só por nós. 

Atribui-se-lhe a frase "Ser simples é complicado". É, de facto. Obrigado, Amália.